Ensaio este texto há alguns meses. São 22h00 e, daqui a pouco, o léxico que chamamos ‘tempo’ vai nos esmagar com a chegada do ‘Ano Novo’. Como quase tudo que fiz na vida deixei estas linhas para a última hora, na esperança de que ele, o texto, se aposse de mim e seja maior, tome conta deste meu espaço/tempo opressor. Desse eu/aqui/agora. Escrevo para um ele/lá/então…
“Sobretudo, não se angustie procurando-o: ele vem até você, quando você e ele estiverem prontos”, é o Caio Fernando, na Carta ao Zézim, lembrando o encaixe encantado entre escritor e escrita.
Estamos, agora, num hospital
Há um estalo! É a enfermeira amarrando meu braço e solicitando que eu feche o pulso para inserir o cateter na veia com a mão dominante. Vejo a cânula ser preenchida com sangue escuro e apago numa viagem de ketamina.
Há cerca de um ano a cena se repete semanalmente. A ketamina é uma droga sintética usada como anestésico em humanos e animais. Seus efeitos tem uma ação dissociativa, psicodélica: pareço estar desconectado do corpo, sinto-me sonhando, com uma certa alforria para outras dimensões.
Esse fármaco provou-se eficaz em pessoas com depressão resistente ou ideação suicida. Em alguns casos o efeito da aplicação é praticamente instantâneo, com melhora logo após a seção. Diferentemente dos antidepressivos convencionais, a ketamina age no glutamato – aminoácido atuante no sistema nervoso central como um neurotransmissor excitatório. Mas isso é outra história.
Voltemos ao hospital, agora com minha mãe (cena recorrente)
Pergunto à médica se tudo vai ficar bem. Ela diz que sim. Não era verdade. Mãe morreu em 06 de junho deste ano, depois de dez anos lutando contra um câncer. Mas a mãe não era só o câncer. Mãe era depressão, desmaio, arritimia, dor de barriga, vômito, queda, gritaria. Mãe era intensa. Em tudo. Por isso também era alegria, euforia, amor, zelo, guarda, confiança, calmaria. Mãe era emoção.
Voltei a Araraquara no final de 16, após o impeachment. Eu – e meus posicionamentos – não cabíamos mais como executivo de esportes da Tv Brasil. Vim resignado e a mãe padecia. Decidi que iria cuidá-la. Até o fim. Ou o meu fim. E lembrei-me do trecho do Guimarães, n’a Terceira Margem do Rio:
‘“Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto…Agora, o senhor vem, não carece mais… O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!…” e assim tomei o lugar do meu pai, que havia resolvido, dizem que por conta própria (eu desconfio!) , ir embora num Natal de 2013.
Em nome desse contrato, desse vínculo, desse apego, amor desmesurado, enfrentei fortes batalhas. Fui tido como ingrato, traidor, pervertido, louco, subversivo, caráter em prova. E nada, nada me importava senão o olhar machadiano oblíquo e dissimulado em minha mãe. Dar sobrevida a ela. Cheguei a pensar: quem sabe o mistério da morte não se resolva até chegar a hora dela? Obstinações…
Nesse período, passei mais horas em hospitais que num estádio de futebol, templo meu. Definhei. Em 2017, um diagnóstico de câncer em mim. E eu não podia. Não era hora. Resolvi curar. Na fé, no milagre, na alimentação ou no braço mesmo….não era hora de´u padecer. Curei-me.
Salto no tempo
Estamos em 05 de junho, um domingo. Visitamos a mãe na casa de repouso. Meus irmãos vão embora, todos vão embora. Fiquei eu e mãe: ‘Não aguento mais’….e essas palavras ressoam, por vezes, numa tristeza lenta e congelada.
– Pode ir minha mãe, quando achar que é a hora. Vou seguir aqui, trabalhando, me cuidando. Não haverá brigas entre os irmãos. Quero que fique em paz.
E mãe partiu. Talvez praquele mundo que vou quando durmo, ou aquela dimensão que habito quando recebo as infusões da ketamina. Já a encontrei por lá. E isso foi um presente. Mas também é outra história.
Epílogo
É quase meia noite e justifico o esparramar destas letras: fecho um ciclo imenso de dor e alegria na vida. Tudo agora, tem uma outra perspectiva. Mãe está em paz e viva! A sinto nos pensamentos, nos textos, nos gestos mais banais. Não me impressiona mais o corpo físico, essa ilusão do eu/aqui/agora.
Nas telas humano-computadorizadas, ainda puder ver a morte do Papa, a tragédia das chuvas em Araraquara, a expectativa da posse de Lula e até a emblemática morte do Pelé. Tudo parece conectado e com uma importância relativa.
Pausa para Pelé
Sobre Pelé não vi nenhuma homenagem que não tivesse sido preparada artesanalmente, com o mesmo deleite que ele, somente com a parte de baixo do corpo, o drible e o bailar, transformou o planeta. Pelé atingiu aquela região da literatura, do ele/lá/então, onde tempo e espaço não fazem nenhum sentido.
Guardo aqui, no relicário da memória, dois momentos preciosos do rei. Uma reportagem pitoresca, na sua Três Corações, mostrando que ele havia nascido dois dias antes da data em que comemora aniversário. Veja aqui
E outra, em que, depois de uma entrevista exclusiva, parei-o para perguntar-lhe da dificuldade em enfrentar a Ferroviária de Araraquara, meu amor. Veja aqui
Fechando ciclos
Nunca, em nenhum momento, usei a palavra ‘eu’ aqui no blog. Sempre disse ‘este colunista’, ou ‘este blogueiro’, de uma forma generalizada, que é pra institucionalizar o veículo. Hoje é dia de quebrar isso. Desejo ser quem sou. Com todas minhas virtudes e defeitos. E desejo que você me leia de verdade.
Sou feito da minha história, da semiótica do meu afeto. Eu, um quase-humano, com dores e amores. Sou, porque vivo estou. Agradeço a todos que me colocaram de pé, quando estava caído (patrocinadores, amigos, colegas, amores e toda sorte de gente que conheci e vou conhecer neste mundo).
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive. (Pessoa)
Feliz Ano Novo, inteiro, sem nada excluir ou exagerar. E brilha, porque alta vive!
À minha mãe e a todos que habitam uma outra dimensão difícil de compreender, mas fácil de sentir.